quarta-feira, 12 de abril de 2017

Se um dia eu não me lembrar de quem sou




Uma chuva forte chegou sem avisar e pegou os donos da casa de surpresa.
Com a água subindo pelas canelas, eles só pensaram em sair dali o mais rápido possível.
Quando contabilizaram o prejuízo, eles perceberam que de tudo o que foi perdido, uma coisa doía mais: as fotografias.


Em algumas fotos, ainda restavam fragmentos de pessoas, objetos e paisagens, mas até para isso era preciso um tanto de imaginação e esforço.
Será que a memória seria suficientemente confiável para guardar todo um passado?
Sem muita certeza disso, eles passaram a pedir aos amigos que enviassem fotos em que eles aparecessem e foi isso o que aconteceu.
Aos pouquinhos, eles foram refazendo o passado através das fotos, mas não foi da forma como imaginavam.
Foi como olhar o passado com um novo olhar, pois não se tratavam de imagens escolhidas por eles, mas por outras pessoas.
Eu li essa história há muito tempo e não dei muita bola na época, mas agora ela faz muito sentido.
A minha avó está ficando esquecidinha, cada dia que passa ela se afasta mais e mais...
Sinto que é algo com o qual eu e a minha família teremos que aprender a conviver.
Eu tenho acreditado a minha vida toda que sou resultado das minhas escolhas, mas diante das circunstâncias tenho me questionado sobre o que acontecerá se eu me esquecer das escolhas que fiz?
Eu me pergunto se o que eu sou é resultado do que aprendi a ser, aprendi a gostar e aprendi a fazer.

Será que nasci desse jeito ou fui me fazendo com o tempo?

A memória...

A minha avó, como eu disse, está numa fase nebulosa, em que não pode mais confiar somente nas suas memórias.

- Vó você adora morar aqui.
- Adoro?
- Sim, você adora.

Essa foi uma parte do nosso diálogo e confesso que ainda me sinto desconfortável, como se eu tivesse me aproveitado do seu esquecimento.
Afinal, o coração de uma pessoa é um mistério, como posso falar com tanta certeza do que a minha avó gosta.
E se ela nunca tiver realmente gostado de morar e guardado isso só para ela ou estivesse mudado de opinião?
Por outro lado, confesso que já cheguei a pensar que a falta de memória é muitas vezes uma benção.

De que adianta lembrar tudo se não temos como mudar o passado ou construir uma nova história?

Eu li recentemente o conto “Nenhum. Nenhuma”, de Guimarães Rosa, no qual o personagem/ narrador tenta com um grande esforço recordar o seu passado.
Ele pensa no que aconteceu ou pensa ter acontecido, mas se confunde, entristece e nos deixa com mais dúvidas do que certezas.

Será que lembrar tudo, em determinado ponto da vida, quando já não podemos alterar o nosso destino, é uma dádiva ou um castigo?

A velhice é como a água que invadiu a casa, mas com a diferença que se aproxima devagar.
Ela estraga algumas coisas, deixa a sua marca em outras e faz muitos momentos desaparecerem, mas está longe de ser uma catástrofe se tomarmos algumas precauções.
Entre elas, guardar as fotos sempre conosco e em um local visível; andar sem pressa e olhar mais para frente do que para o espelho e, sobretudo, nos momentos de dúvida escolher o que fizer o nosso coração mais feliz.
















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