sábado, 25 de julho de 2020

A moça




Ela saiu de casa com o firme propósito de falar o menos possível.
O porquê disso? Se você tivesse dormido com ela na noite passada não estaria fazendo essa pergunta, mas ela tinha passado a noite sozinha.
Sozinha não é a palavra certa. Ela passou à noite muito mal acompanhada por pensamentos inconvenientes e de manhã estava convencida do quanto sua vida – toda ela – era inútil.  

Todas as coisas que ela fazia ou dizia não eram importantes e deveriam ser imediatamente bloqueadas.
Era possível se transformar em uma pessoa melhor, mas estava convencida de que isso só poderia acontecer se ela se calasse e passasse a ouvir mais as pessoas ao redor.
Nesse estado de espírito, ligeiramente depressivo e em elevado grau de autodestruição, ela só pensava que deveria ser grata a todos que tinham suportado sua presença e suas opiniões com simpatia e sem agredi-la.
Estava cercada por pessoas evoluídas, simpáticas, amáveis...
O mínimo que podia fazer agora que a sua ficha tinha caído era ficar calada, calar enquanto era tempo, enquanto essas pessoas ainda não tinham perdido a paciência.
E enquanto ela seguia de carro até a cidade convicta a falar o menos possível e se sentindo grata a todos, menos consigo mesma, olhou pela janela e por instantes viu o mar.
Lá no mar havia dezenas de barquinhos enfrentando com doçura as ondas de suas vidas como se estivessem dançando contra a correnteza.
Que forma bonita de enfrentar a rotina, abraçar o hoje, viver o momento sem querer mais, sem precisar transformá-lo, sem questionar porque tem que ser assim, sobretudo, sem se questionar. Ela pensou.  
E enquanto permanecia calada, observando os barcos no seu balé diário, sentiu vontade de chorar, mas se controlou apertando o volante até seus dedos ficarem brancos.
O mar passou pela janela do carro.
Já no sinal vermelho, ela olhou as mãos, viu as marcas do volante e se sentiu muito inadequada, de forma quase insuportável.
Se tivesse condições para isso naquele momento, ela se compararia a um tronco de árvore que é arrastado pela tempestade até chegar uma praia estranha, onde sabe que vai morrer de solidão.
Mas, no estado em que ela estava, ah... coitada!
É evidente que não basta ficar calada, no próximo sinal de trânsito eu vou dar meia volta e retornar para casa. Foi tudo no que ela conseguiu pensar.
Sim, ela ficaria em casa, longe de todos, em completo silêncio, apenas ouvindo o mundo ao seu redor, sabia que precisava aprender a ser outra.
Que outra? Ela ainda não sabia, mas tinha certeza de que era inútil querer continuar sendo ela mesma e ser amada por isso.
Estava por um fio de se abandonar quando, nesse silêncio completo, uma criatura desconhecida começou a falar dentro dela.  
A princípio era tão baixo que ela quase não percebeu, mas a voz foi insistente:
- Porque você se preocupa tanto quando ninguém se importa?
A voz foi ficando cada vez mais alta MAIS alta, MAIS ALTA, ALTA E ALTA, MAIS E AMAIS...
A voz repetia sempre a mesma pergunta e não parecia disposta a parar até que conseguisse uma resposta sincera.
O sinal vermelho abriu.
Perturbada, a moça ligou o carro sem saber se deveria voltar para casa ou responder aquela voz estranha que gritava dentro dela.
E, nesse estado de ânimo, ela não conseguiu sair do lugar.
Os motoristas começaram a buzinar enlouquecidos, logo surgiu um grande congestionamento e as pessoas começaram a brigar.
O clima ficou ainda mais tenso quando uma moto tentou ultrapassar e bateu na porta de um carro.
Nesse estado de coisas, alguém teve a ideia de falar com a moça:
- Vai, segue em frente.
Funcionou.
Talvez ela só precisasse que alguém lhe dissesse o que fazer. Talvez ela tenha encontrado a resposta. Talvez nem uma coisa e nem outra.
Quando isso aconteceu ela olhava para as mãos, totalmente alheia ao caos que havia criado.
A moça voltou à praia onde há pouco tempo havia avistado os barquinhos e, depois de chorar suas mágoas, perdoar suas inadequações, tirou os sapatos e dançou na areia ao ritmo das ondas.
Gostei de vê-la assim, com suas mãos e pés rodopiando e saltando sobre as conchas da praia.
Se você estava naquele congestionamento e quer notícias da moça, saiba que ela já superou o medo de ser ela mesma, recuperou a autoestima e ainda observa o mar.

continuação: 


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